Parece uma bicicleta, mas não é bem isso. São 30kg de ferro bruto que separam as duas rodas aro 26. Dois bancos, duas coroas com pedais e dois guidões. Ela está mais para um engenhoca geminada para dar asas ao sonho da dupla Didi e Zaca. Silomar, o “Didi”, assume a dianteira, a função do guia, enquanto Genival, o “Zaca”, totalmente cego, acomoda-se logo atrás. Pedalam juntos para empurrar essa quase bike pelos muitos quilômetros que percorrem de três a quatro vezes por semana.
“Quando eu enxergava, eu já corria e pedalava. Depois da cegueira, eu precisei recomeçar na atividade física. Eu conheci cegos que andavam sozinhos para a rodoviária, voltavam, iam com aquela bengalinha para cima e para baixo e eu falei: ‘Ô, meu Deus, eu também vou conseguir isso. E consegui”, relembra Genival Ribeiro, 57 anos, que, em 26 de outubro, compete no Festival Pedal sem Fronteira, um desafio de 100 km, em Luziânia (GO).
Neste mês de setembro destaca-se o Dia da Luta Nacional das Pessoas com Deficiências, celebrado no último dia 21, vale lembrar que Genival é um dos cerca de 200 deficientes visuais que trabalham na Novacap.
No último fim de semana, a dupla percorreu 160 quilômetros, na Prova Rota 66, em Valparaíso (GO). Eles cumpriram o percurso em cerca de sete horas, com uma velocidade média de 22,7 km/h e máxima de 70,6 km/h. “Foi uma grande resultado, pois fazemos isso em dupla e com uma bicicleta sem as condições adequadas. Muita gente levou 10 horas para fechar o trajeto”, explica o atleta com deficiência.
Auxiliar de serviços gerais do Viveiro 1 da Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap) desde 1992, Genival, de 57 anos, tinha 22 quando perdeu a visão em um acidente automobilístico. Numa corrida de carros, chocou o carro que dirigia em um poste, o que fez com que os cacos de vidro do para-brisas acabassem perfurando seus globos oculares.
“Até esse momento, eu enxergava tudo, dependia só de mim mesmo e de Deus. Depois disso, comecei a depender de todo mundo. Ficou tudo escuro”, lamenta Genival. Contudo, foi no esporte que encontrou sua nova luz. Retomou as corridas de atletismo, que fazia desde os 17 anos, e começou a pedalar.
Tem sido assim desde novembro de 2023, quando montou a parceria com Silomar Rodrigues de Matos, de 48 anos, para ser seu guia na bicicleta. “Cheguei para buscá-lo às 6 horas e fomos pedalando até o DV na Trilha, um projeto para inserir pessoas com deficiência visual no esporte. Lá, a responsável pela iniciativa pediu para que fizéssemos fazer uma autodescrição com o objetivo de ajudar aos demais a imaginar nossa fisionomia. Eu disse ao Genival que algumas pessoas já me disseram que eu pareço com o Didi, dos Trapalhões, pois era alguém que ele sabia da aparência. Então ele ficou me chamando de ‘Didi’ e eu disse ‘se eu vou ser o Didi, então você, que é menorzinho, vai ser o Zaca, de Zacarias. E assim nasceu a dupla Didi e Zaca”, conta Silomar.
Juntos, já participaram de algumas provas e desafios, tanto com diferenciação para pessoas com deficiência (PCDs), quanto competindo com todo tipo de ciclistas. Alguns destaques são a Trilha Rota 60 em Abadiânia, o Brevet Vale Perdido, o 7º Desafio do Engenheiro de MTB (Mountain Bike), Desafio do Pelotão da Fé e a competição entre DVs no Bike Camp 2024 da Torre de TV, na qual ficaram com o segundo lugar. Enquanto isso, 2026 já reserva uma infinidade de trajetos para a dupla.
Rotina de campeão
“Eu acordo às três da manhã e lavo toda a louça para ajudar com as tarefas domésticas. Depois, encaro uma hora de musculação com alguns pesos que construí. Então, minha esposa acorda e passa um cafezinho para nós, e às quatro e meia já estamos aquecidos e saímos para correr”, diz Genival, sorrindo.
Os dois correm de 10 a 12 km escutando moda de viola sertaneja até às 5h30, quando retornam para se aprontar para o trabalho. “Tomo um banho e minha esposa me leva até o BRT, que me leva até a Novacap, onde eu entro às 8h e trabalho até às 17h”, explica. Quando retorna para casa, troca-se rapidamente para esperar por Silomar para mais uma rotina de treinos pelas ruas do Distrito Federal.
“A gente pedala até quatro vezes por semana e faz uns 50 a 60 km em umas duas horas e meia. É normal. A cada 15 dias, aos sábados, saímos cedo para o nosso ‘longão’ de mais de 100 km”, conta o atleta com deficiência.
Diferente do trabalho de Genival, que atua com reciclagem e reaproveitamento de mudas, Silomar trabalha com a poda de árvores, sendo parte da Divisão de Manutenção de Áreas Verdes (DMAV) da Diretoria das Cidades da Novacap. Ou seja, ele faz serviço externo todos os dias. Ele conta que o primeiro contato com Genival ocorreu durante uma assembleia, quando decidiram experimentar pedalar juntos.
“Quando eu enxergava, eu já corria e pedalava. Depois da cegueira, eu precisei recomeçar na atividade física. Eu conheci cegos que andavam sozinhos para a rodoviária, voltavam, iam com aquela bengalinha para cima e para baixo e eu falei: ‘Ô, meu Deus, eu também vou conseguir isso. E consegui”
Genival Ribeiro, servidor da Novacap
“Às vezes, eles [deficientes visuais] acham que nós estamos os ajudando e nos doando para isso. Não. Na verdade, é o contrário, pois isso é uma ajuda enorme para quem guia. Ninguém tem noção do ganho e do crescimento. Somos uma dupla, e chega uma hora que o sincronismo entre nós é tão grande que me sinto como se estivesse pedalando sozinho. Às vezes, conseguimos nos entender sem precisar falar uma palavra”, ressalta Silomar.
Desafios e próximos passos
A participação nos desafios e provas acaba sendo comprometida pela questão financeira. Como PCD, Genival volta e meia recebe isenção de taxas para participar de competições, benefício que não costuma se estender a Silomar. “Para algumas competições que a gente participa, o DV na Trilha consegue isenção para ele, mas quem guia não recebe nada. Se eu quiser participar com registro, numeração no peito, chip e direito a medalha, eu preciso pagar a inscrição normalmente”, conta o guia.
A bicicleta que a dupla utiliza, a Tandem aro 26, foi cedida pelo projeto DV na Trilha como forma de estimular a participação da dupla no projeto e nas competições. Contudo, o peso do equipamento e as rodas aro 26 dificultam a performance da dupla e é incompatível com a adição de componentes mais modernos, o que resulta em constantes manutenções.
Em busca de maior performance, desempenho e competitividade, Didi e Zaca sonham com uma nova bicicleta, mais leve e com rodas aro 29, que aceite componentes mais modernos e reduza o peso total do equipamento para, pelo menos, 17kg.
Além disso, almejam adquirir alguns equipamentos de proteção e segurança, como capacetes, óculos, roupas adequadas ao ciclismo, sapatilhas, mochilas de hidratação, luzes de sinalização traseira e dianteira, GPS para localização, câmaras de ar reservas, entre outros itens.
A dupla estima que o investimento necessário, ao menos para adquirir uma bicicleta mais propícia para a atividade, esteja entre R$ 15 mil e R$ 20 mil. Por isso, iniciaram uma vaquinha para que aqueles que se solidarizem com a iniciativa possam doar. A chave pix para doações é o email silomatos33@gmail.com (Silomar Rodrigues de Matos – Banco do Brasil), por meio do qual são aceitas doações de quaisquer valores.
Os dois disponibilizam, ainda, a página do Instagram @olhospra2, por meio da qual é possível acompanhar o desempenho e a aventura dos ciclistas. Junto a isso, o número de telefone e WhatsApp (61) 98661-1508 pode ser utilizado para contato junto ao próprio Silomar.
*Com informações da Novacap