MICHELE OLIVEIRAMILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS)
O tema de pesquisa do professor Alberto Grandi causa tanta polêmica na Itália que ele acumula uma enxurrada de mensagens ofensivas recebidas por email, além de comentários indignados de políticos nacionalistas.
Um dos auges dos ataques foi, no começo do ano passado, após entrevista em que ele comentava as origens da pizza e do espaguete à carbonara, dois ícones da cozinha italiana.
A dura verdade que irritou parte dos italianos é que, apesar de serem consideradas típicas da península, essas receitas são menos tradicionais do que se imagina. Nos dois casos, foram fortemente influenciadas pelos Estados Unidos e se firmaram no panteão gastronômico nacional somente no século 20.
“As reações, em média, são agressivas. Os casos mais clamorosos são o carbonara e a pizza, porque viraram elementos identitários de Roma e Nápoles”, diz à Folha Grandi, professor de história da comida na Universidade de Parma. “Mas o carbonara [romano] é dos anos 1990, não estamos falando da Idade Média. E a pizza que comemos hoje é a americana.”
São constatações assim, fundamentadas com o rigor da pesquisa acadêmica e com tiradas bem-humoradas, que Grandi escreve no livro “As Mentiras da Nonna – Como o Marketing Inventou a Cozinha Italiana”, que acaba de ser lançado no Brasil pela editora Todavia.
Na publicação, Grandi destrincha os acontecimentos históricos e socioeconômicos que embalaram a criação do mito da cozinha italiana que conhecemos hoje, um dos maiores soft powers do país.
Ele conta que o molho carbonara, na versão com ovos e bacon, nasceu no fim da Segunda Guerra Mundial com ingredientes americanos, fornecidos pelas tropas de ocupação -os ovos eram em pó. Nada a ver com a lenda de que era uma refeição de quem trabalhava com carvão (“carbone”) no século 18.
“O espaguete à carbonara não é nada além de um típico café da manhã americano, com a adição da pasta”, escreve Grandi. A receita aclamada hoje, que leva papada ou bochecha (“guanciale”) de porco e queijo pecorino, teria virado “autêntica” há 40 anos.
Sobre a pizza, Grandi escreve que se trata de uma comida de rua presente em boa parte dos países do Mediterrâneo, em diferentes versões e nomes -o pão pita é uma delas. “Aquele disco de pão com algo em cima para torná-lo mais rico e saboroso não é exclusividade italiana nem napoletana”, afirma.
O autor explica que o verdadeiro queijo parmigiano é feito, como antigamente, somente em Wisconsin, nos EUA, e que o panetone milanês nasceu primeiro pela iniciativa da indústria, nos anos 1920, para depois ganhar atenção da produção artesanal, como é valorizado hoje. Ganham comentários detalhados também o vinagre balsâmico de Módena, o chocolate de Módica e o presunto cru de Parma.
O livro desmonta a ideia, sustentada por muitos italianos, de que a cozinha italiana tem raízes medievais e no Renascimento e foi difundida mundo afora pelos emigrados. A real é que aquilo que se entende hoje por culinária italiana, defende o autor, surgiu depois dos anos 1970, como um produto ecônomico e cultural, resultado de um processo artificial.
Sobre os emigrados, sim, eles tiveram papel fundamental, mas na direção contrária: eles construíram no exterior, especialmente na América do Norte, várias das características dessa cozinha que, mais tarde, foram levadas de volta por eles ao país natal, com novos ingredientes e técnicas. Foi nesse processo que a pizza ganhou molho de tomate por cima da massa.
Antes de saírem, esses italianos comiam basicamente polenta de milho, no norte, e vegetais, ao sul. Longe, portanto, de ser uma mesa exuberante com uma infinidade de gostosuras regionais. Foi em terras estrangeiras que eles descobriram a carne, no Brasil e na Argentina, e os ovos, o leite e os queijos, nos EUA.
A influência dos emigrados é um dos argumentos principais de Grandi para explicar como se deu a construção da atual identidade gastronômica italiana. “Eles levam para as cidades do sul e do norte da Itália dinheiro, novos produtos e uma nova mentalidade.”
Se o vaivém migratório foi algo espontâneo, o que aconteceu a partir dos anos 1970, e que acabou por formar o mito da cozinha italiana, foi mais calculado. Após o boom econômico do pós-Segunda Guerra, que transformou os hábitos da população, com eletrodomésticos e comidas prontas, algumas crises se abateram sobre a Itália.
Nesse período, o país passou a questionar o modelo de desenvolvimento baseado na grande indústria e começou a se adaptar em sistemas de pequenas empresas, com destaque para turismo e enogastronomia.
O movimento apostava na força do “made in Italy” e na tradição, ainda que inventada. As marcas de tutela, como os selos denominação de origem controlada, se tornaram bandeiras de identidade.
Não existe uma cozinha italiana, diz Grandi. “Existe uma cozinha na Itália, nos EUA e no Brasil. Não tem nenhum motivo para considerar a da Itália mais original do que a cozinha italiana do Brasil”, diz. As milhares de pizzarias em São Paulo são prova disso.
AS MENTIRAS DA NONNA – COMO O MARKETING INVENTOU A COZINHA ITALIANA
Autor Alberto Grandi
Tradução Alessandra Siedschlag
Pág. 208. Todavia
Preço R$ 79,90